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Série LIBERDADE DE EXPRESSÃO - Parte 01

         Júlio César Lopes da Silva

No início do exercício profissional na caserna do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Mato Grosso no ano de 2004, teve-se a oportunidade de presenciar as péssimas condições de trabalho, a insuficiência de qualificação técnico-profissional, além de diversas práticas abusivas cometidas pelos superiores contra os servidores de baixa patente.

Tais circunstâncias geram, obviamente, insatisfação e desmotivação nestes servidores, que repercuti diretamente na qualidade da prestação do serviço de segurança pública à sociedade que, por sua vez, deixa de confiar ou valorizar a instituição, fazendo perpetuar o insucesso da segurança pública.

Foi observado, no entanto, que mesmo diante dos problemas e dos abusos, os militares de baixa patente se quedavam inertes e calados por medo de perseguições e mais abuso que vem revestido de uma fictícia legalidade, visto que o Regulamento Disciplinar Militar do Estado de Mato Grosso, Decreto nº 1239, de 21 de abril de 1978, prevê pena de até 30 (trinta) dias de prisão ao militar que criticar ato do governo ou de superior hierárquico ou por recorrer ao judiciário sem antes esgotar a esfera administrativa, pois nunca, dentro da caserna matogrossense, se discutiu a vigência de tal Regulamento Disciplinar que sequer foi recepcionado pela nova ordem constitucional.

Assim, este trabalho visa demonstrar a ilegalidade das normas militares cerceadoras da livre manifestação do pensamento, como afronta à dignidade da pessoa humana do profissional da segurança pública, motivo pelo qual se propõe a criação de políticas públicas para efetivamente garantir o exercício de tal direito, a fim de possibilitar que temas como a discriminação, corrupção, abusos e as demais dificuldades da segurança pública venham à tona para propiciar a plena discussão dos temas relacionados à segurança pública, criando um ambiente apto para a mudança e melhoria da segurança no Brasil.

Com efeito, há várias regras do Regulamento Disciplinar Militar e do Código Penal Militar que não foram recepcionadas pela nova ordem constitucional, porém o presente trabalho concentrar-se-á apenas no cerne para a solução dos problemas da segurança pública, que é o discurso democrático, a criação, a livre manifestação do pensamento.

A livre manifestação do pensamento é o pilar principal no qual se sustenta a democracia, já que esta se pauta no debate livre à procura da melhor tomada de decisão para o bem comum da sociedade. Não há democracia nem Estado Democrático de Direito sem a livre manifestação do pensamento, motivo pelo qual o seu cerceamento leva ao autoritarismo e ao descontrole da atividade governamental.

A liberdade de expressão é definida como direito natural, decorrente da própria natureza humana, sendo, portanto, um direito fundamental, intransferível e inerente ao direito da personalidade e à dignidade da pessoa humana. É um direito individual com repercussão nos direitos coletivos e difusos, visto que o Estado Democrático de Direito depende de cidadãos informados, conscientes e politizados aptos a tomar decisões para a melhoria da coletividade. Nesse sentido, o Ministro do Supremo Tribunal de Federal, Marco Aurélio[2], sintetiza que a Liberdade de Expressão é um direito fundamental do cidadão, envolvendo o pensamento, a exposição de fatos atuais ou históricos e a crítica.

A Declaração de Direitos humanos e do Cidadão, de 1789, em seu artigo 11 dispõe que a livre a manifestação do pensamento e das opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem.

Pontes de Miranda[3] pondera que liberdade psíquica é a base para toda e qualquer liberdade, abrangendo tudo que serve para enunciar e dar sentido, incluindo a liberdade de manifestar para com as demais pessoas ou enquanto ao homem consigo mesmo.

Norberto Bobbio[4], em obra o futuro da Democracia, define democracia como “um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados” e Edilson Faria[5] ensina brilhantemente que democracia e censura são termos antitéticos, antagônicos, inconciliáveis.

Com efeito, a livre circulação de opiniões e pluralismo ideológico faz oposição ao monopólio governamental. Assim, ao se vedar ou limitar o direito à liberdade de expressão, institui-se um sistema antidemocrático e autocrata.

Nesta seara, democracia versus censura, Pinto Ferreira[6], leciona que no Estado Democrático, defende-se, no aspecto positivo, a livre manifestação do pensamento e, sob o aspecto negativo, veda-se qualquer tipo de censura, impedindo que a liberdade de expressão sofra algum tipo de limitação prévia concernentes à censura de natureza política, ideológica ou artística.

Desmond Fischer[7] afirma que a evolução gradual da democracia faz um paralelo com desmistificação do processo de comunicação e a conseqüente disseminação da informação e dos meios de comunicá-la, pois quanto mais pessoas tiverem informações, melhor será a sociedade e mais forte sua base democrática, pois o direito de comunicar-se ultrapassa o conceito legal e alcança o conceito filosófico e ético, já que é no nível político, sócio-culturais, econômicas e legais do direito de comunicar se tornam mais significativos, devendo, portanto, garantir esse direito em sua plenitude.

A manifestação do pensamento, para Aluizio Ferreira[8] É pressuposto para uma convivência democrática plena, uma vez que necessita de discussão, negociação, oposições e embates de idéias, pois estas são instrumentos de que se valem para firmar suas convicções, persuadindo ou convencendo os respectivos pares e obtendo unanimidades ou consensos. 

Todavia, durante o período militar (1964-1985), viveu-se sob uma política governamental autoritária e antidemocrática, movida pela censura e pela manipulação das informações pelo Estado. A liberdade de expressão da sociedade, civil ou mesmo militar, era controlada pela alta cúpula do governo que buscava, independentemente de quaisquer meios ou força, perpetuar-se no poder.

Muita coisa mudou com o fim do governo militar, mas ainda restam resquícios daquele período funesto. A diminuição da censura com advento da promulgação da Constituição da República foi um significativo avanço político, social, cultural e científico ao país, no entanto a censura continua existindo em vários setores da sociedade, com destaque especial às instituições da segurança pública, principalmente as militares, já que nestas instituições vive-se um verdadeiro período de “cala a boca”, propiciada pela aplicação de algumas normas que não foram sequer recepcionadas pelo novo ordenamento jurídico.

Nesse sentido, continuam sendo ilegalmente aplicados, especificadamente ao que concerne à liberdade de expressão, o artigo 166 do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 e outras normas, com o mesmo fim, dispostas nos Regulamentos Disciplinares Militares das Polícias Militares.

Tais institutos, cerceadores da liberdade de expressão, devem ser imediatamente expurgos do nosso ordenamento jurídico, pois somente à Constituição cabe a regulação da liberdade de expressão nos termos do artigo 220, o qual se transcreve com destaques:

“Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”

Assim, todo e qualquer tipo de censura ou cerceamento à liberdade de expressão disposta em lei é inconstitucional, visto que cabe somente à Constituição Federal tal regulação, como se demonstrará neste trabalho.

A alternativa encontrada pelos servidores da segurança pública, principalmente os militares, foi recorrer à tecnologia da internet, fazendo uso dos blogs como meio para manifestação do pensamento e discussão pela melhoria da prestação dos serviços de segurança à sociedade, bem como pela busca incessante por valorização profissional e otimização das condições de trabalho do policial.

Notas:
[1] Texto adaptado da Monografia Liberdade de Expressão dos Policiais e Bombeiros Militares. Apresentada no 1º Concurso de Monografia do SENASP,  obtendo a 2ª colocação.
[2] STF. HC nº 83.125-7 DF, relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgamento 16/09/2003, DJ 07/11/2003 coator Superior Tribunal Militar.
[3] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 67, tomo V, 3ª p 150
[4] STF. Voto do Ministro do STF, Carlos Ayres Brito, relator da ADPF nº 130 em decisão em  Sessão Plenária do dia 28 de abril de 2009.
[5] FARIAS, Edilsom. Democracia, censura e liberdade de expressão e informação na Constituição Federal de 1988Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2195>. Acesso em: 15 fev. 2009.
[6] FERREIRA, Pinto. Código Eleitoral Comentado. v1. p  68
[7] FISCHER, Desmond. O Direito de Comunicar, Expressão, Informação e Liberdade. p 19 e 91
[8] FERREIRA, Aluízio. Direito à informação, direito à comunicação: direitos fundamentais na Constituição Brasileira. p 87

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