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A Casta Intocável: Como Concursos Criam ‘Semideuses’ Imunes à Lei!



Autor: TENENTE-CORONEL AGUIAR


POR: Luiz Fernando Ramos Aguiar

Existe uma síndrome assustadora entre os brasileiros; na verdade, é quase um fetiche. Uma verdadeira veneração por funcionários públicos, principalmente os concursados. Parece que criamos uma casta de eleitos: os funcionários de carreira. E o ritual de passagem para adentrar nesse seleto grupo de iluminados não envolve cerimônias, nobreza ou ascendência familiar. Nem mesmo é exigido que levem uma vida de renúncia, como se cobra dos sacerdotes católicos, que precisam fazer voto de castidade ou, em alguns casos, de pobreza. Para fazer parte da casta mais protegida de cidadãos brasileiros, basta passar em uma prova.

Os mesmos cidadãos que afirmam detestar os políticos que eles mesmos elegeram enxergam, nos concursados, os salvadores da pátria. E, se esses sacerdotes do Estado usarem uma toga, automaticamente são elevados ao status de semideuses. Mesmo que seja senso comum, para a população, que o governo brasileiro esteja completamente tomado pela corrupção, burocracia e ineficiência, parece que existe uma classe de trabalhadores do Estado que é considerada, pela mídia, imune às mazelas do país: nossos magistrados.

Mas uma recente operação da Polícia Federal, denominada Sisamnes, investiga um esquema de compra e venda de decisões judiciais envolvendo gabinetes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), deixando claro para todos os devotos dos concursos públicos que o sistema não é suficiente para garantir a conduta ilibada dos servidores públicos. A operação teve início após o assassinato do advogado , em dezembro de 2023, em Cuiabá/MT. Entre os investigados estão dois desembargadores, Sebastião de Moraes Filho e João Ferreira Filho, além de outros três servidores do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT), que foram afastados de suas funções por suspeita de participação no esquema.
Sebastião de Moraes Filho e João Ferreira Filho,
Roberto Zampieri

Para se ter uma ideia da gravidade das acusações contra os magistrados, ambos estão sob monitoramento por tornozeleira eletrônica, tiveram seus passaportes apreendidos e até bloqueio de bens.1

Mas, como a corrupção não é privilégio de classes determinadas, o ex-presidente da Ordem dos Advogados de Mato Grosso, Ussiel Tavares, também é alvo da operação. O advogado foi alvo de mandado de busca e apreensão, mas sua defesa afirmou que desconhece a decisão que embasou o pedido.
Ussiel Tavares, ex-presidente OAB-MT

Esse episódio é uma amostra de como os estratagemas burocráticos para a escolha de funcionários públicos não são a panaceia, propagada por seus defensores, para garantir um serviço público de qualidade e a escolha de servidores honestos. Mesmo os mais altos funcionários das esferas mais respeitadas do poder judiciário podem cair na tentação de utilizar suas funções públicas para obter vantagens monetárias, políticas ou ideológicas. Mesmo os mais altos sacerdotes do poder estatal podem sucumbir, e parece que as estratégias de seleção para as carreiras públicas, estabelecidas a partir da Constituição de 1988, não foram suficientes para impedir o desvirtuamento moral de nossos servidores.

Essa não é uma defesa do antigo “Trem da Alegria”, quando os quadros do funcionalismo público brasileiro eram preenchidos, majoritariamente, por protegidos, afilhados e parentes das autoridades públicas em cargos de chefia. Trata-se, porém, de um alerta para o povo de que o simples fato de alguém ter passado por um processo seletivo, mesmo rigoroso, não é nenhuma garantia para o bom funcionamento das carreiras de Estado. Até porque os critérios de seleção são, quase sempre, focados em aspectos meramente técnicos, enquanto as características que deveriam ser avaliadas para se verificar se uma pessoa possui o perfil adequado para determinado cargo são solenemente ignoradas — muitas vezes, por força da legislação em vigor.

Precisamos ter em mente que uma prova, escrita ou oral, nunca será suficiente para avaliar aspectos subjetivos. No entanto, muitas vezes esses aspectos são fundamentais para o exercício de determinados cargos. Outro problema é a estabilidade extrema. A legislação, criada para garantir aos funcionários públicos autonomia para tomar decisões que contrariem seus chefes ou autoridades políticas, acabou se transformando em um salvo-conduto para a incompetência e a desonestidade.

A dificuldade para demitir, ou mesmo punir, um servidor é tão absurda que garante aos mal-intencionados uma folga confortável para praticar suas atrocidades contra a população, a quem deveriam servir. No caso dos magistrados a dificuldade é ainda maior e a punição mais servera que podem receber é uma confortável aposentadoria compulsória, praticamente um convite ao crime para indivíduos desprovidos de freios morais. De acordo com um levantamento realizado pelo pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Moisés Lazzaretti Vieira para sua dissertação de mestrado, de 115 processos administrativos disciplinares (PADs) contra magistrados no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 2007 a 2017, 85 foram julgados e 57 tiveram como penalidade a aposentadoria compulsória. Entre esses aposentados, apenas dois foram condenados em ações na justiça criminal, e mesmo assim garantiram seus proventos para o resto da vida.2


Não existem motivos para confiarmos em nenhuma autoridade pública simplesmente porque foram submetidas a um concurso. É preciso que a desconfiança esteja sempre presente. Mesmo as mais altas autoridades de toga, com todos os seus privilégios e altos salários, não estão imunes à canalhice. É fundamental que existam mecanismos fortes de controle para todos os servidores, mas principalmente para aqueles que exercem um poder de decisão quase absoluto sobre as pessoas submetidas à sua autoridade. Confiar cegamente em uma categoria de profissionais não é apenas ingenuidade, é burrice.

Em um país onde a corrupção e o crime se espalham por todas as camadas da sociedade, não existe nenhum motivo ou evidência de que essa influência não tenha alcançado também o poder judiciário. O caso investigado pela Polícia Federal, no Mato Grosso, pode ser apenas a ponta de um gigantesco iceberg que o Titanic tupiniquim insiste em ignorar. Precisamos criar e utilizar mecanismos de controle que impeçam a colisão iminente. Afinal, se confirmarmos que a corrupção chegou aos gabinetes do Superior Tribunal de Justiça, até onde mais ela pode ter se alastrado? Tomara que possamos descobrir a tempo.Subscrito
Referências:


2Por que é tão difícil demitir um juiz – https://ponte.org/por-que-e-tao-dificil-demitir-um-juiz/
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